Os “pontas-de-mama” e a profecia de Ricardo Araújo Pereira
Não sei se os miúdos ainda falam assim, mas eu, que sou razoavelmente mais novo do que Fernando Santos, também cresci a jogar nos baldios com a expressão do estar “à mama”, para caraterizar o jogo daqueles avançados que, como um dia alguém disse acerca de Jardel, “não jogam nada, só sabem fazer golos”. Não sei por que razão, gerou-se a ideia de que, depois de ter acabado com os dez puros, o futebol agora também não quer saber dos nove. E isso é um erro. Porque, conforme prova, por exemplo, a eclosão de Haaland, os nove de área continuam a fazer todo o sentido no jogo, ainda que tragam com eles um problema: para os utilizar, é preciso jogar. E as equipas nacionais estão cada vez mais viciadas noutro futebol, um futebol que prefere transitar.
Uma coisa que também faz todo o sentido, apesar de não se ouvir nos baldios onde eu jogava futebol, é o estudo e o aproveitamento das transições, sejam elas defensivas ou ofensivas. Lembro-me às vezes do muito que me ri, uma noite, no Estádio Olímpico de Montjuic, no final de um Espanyol-Benfica que eu fui comentar para a RTP e em cuja emissão especial tivemos os três membros benfiquistas do Gato Fedorento, que tinham ido ver o jogo. Aconteceu em 2007, mais ou menos a altura em que essa nova forma de ver o futebol se popularizou, porque os comentadores começaram a estudar e a usar esses termos nas TVs. E, não sei se já no ar ou se naquele bocadinho em que estivemos ali a entreter-nos à espera de começar, dizia o Ricardo Araújo Pereira algo como isto: “Não jogámos muito, mas transitámos sempre muito bem”. Dizia-o a gozar, com aquele jeito que só os tipos com verdadeira graça conseguem ter e sem saber que o gozo estava a ser profético. Mais de uma década depois, esse é o estado geral do futebol português.
Regra geral, as equipas portuguesas não jogam muito, mas transitam muito bem. Foi assim que fomos campeões europeus: muita solidariedade e segurança defensiva, jogo sem erros e uma capacidade extraordinária para ferir adversários mais expostos em momentos de ataque rápido e contra-ataque. O estudo do jogo nas universidades e a popularização dos seus quatro momentos (organização ofensiva, organização defensiva, transição ofensiva e transição defensiva), a que Jorge Jesus juntou um quinto (as bolas paradas) levou à criação de uma geração de treinadores que preferem um futebol mais cínico e menos trabalhado. Trabalhar defesa é mais fácil do que trabalhar ataque, jogar em ataque organizado obriga à criação de envolvimentos que acarretam muita desorganização e depois podem pagar-se caro, como se viu, por exemplo, no primeiro Sporting de José Peseiro, aquele que perdeu tudo depois de estar quase a ganhar.
É por isso que a tendência geral das equipas portuguesas nas provas internacionais é de privilegiar a segurança defensiva, procurando depois ferir em transição. É por isso que o foco é em avançados que não marcam golos mas defendem bem. É por isso que se acentuam as nuances estratégicas em cada desafio, como se o fundamental fosse sempre saber contrariar os pontos fortes do adversário. É por isso que até as equipas que alegam querer basear o seu modelo na posse fazem mais golos em ataque rápido e contra-ataque do que em organização ofensiva. É por isso que se cria a ideia de que o futebol já não quer “pontas-de-mama”, numa altura em que 100 milhões de euros talvez não cheguem para contratar Haaland ao Red Bull Salzburgo. E talvez seja por isso que o SC Braga sofre em Portugal, face a equipas que ficam atrás e lhe dificultam as tais transições, mas depois brilha na Europa. Ou que o Vitória SC, uma das poucas equipas com uma organização ofensiva trabalhada em Portugal, encanta mas não faz resultados na UEFA.
O que as pessoas precisam de entender é que não há uma forma correta e uma forma errada de jogar. Há modos certos e errados de explorar um determinado grupo de jogadores, como há modos certos e errados de trabalhar, da mesma forma que há jogadores com mais e com menos qualidade. O segredo está em adequar tudo. Esse é o ovo de Colombo que ninguém, repito, ninguém, encontrou ainda em Portugal esta época.
by António Tadeia
Fonte; https://antoniotadeia.com/os-pontas-de-mama-e-a-profecia-de-ricardo-araujo-pereira/
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